No primeiro dos três artigos dessa série sobre liderança estratégica, apresentei o modelo que desenvolvi para estruturar uma “caixa de ferramentas” de liderança para cada horizonte de planejamento estratégico. Até agora, essa é a matriz de liderança estratégica, com os elementos já discutidos preenchidos.
Nesse artigo, vamos aprofundar no segundo horizonte, o futuro intermediário, arena da liderança estratégica. Como a ponte entre futuro e presente, a liderança estratégica é a união do idealismo da liderança visionária, com o pragmatismo da liderança tática. E justamente por ser essa união de opostos, é tão relevante para construir uma empresa que se mantém competitiva no presente, sem abrir mão dos seus planos futuros.
Esse é o segundo de três artigos sobre liderança estratégica. O último tratará da liderança tática, e da implementação do modelo.
Liderança para o futuro intermediário
A função do líder em relação ao futuro intermediário está na definição, com clareza, dos objetivos, indicadores e iniciativas que permitem à organização estar mais preparada para o futuro que emerge, ao passo que permanece competitiva no curto e médio prazos. Essa função se manifesta das seguintes formas:
Objetivo: diferenciação
Como podemos ser reconhecidamente excelentes em um conjunto de coisas?
Toda estratégia bem desenhada é, no final do dia, uma estratégia de diferenciação. Mesmo uma empresa que busca competir por custo, está buscando se diferenciar das demais. Afinal de contas, cobrar mais barato e não ser reconhecido como uma opção mais em conta perante os demais me parece uma receita para o fracasso.
Trazendo a questão de diferenciação para a prática da liderança, uma reflexão que sempre tenho é a seguinte: estamos definindo indicadores e metas para o que realmente nos diferencia? Ou seja, como nossos KPIs (indicadores chave de performance) nos direcionam para uma posição específica?
Se o seu conjunto de objetivos e metas estratégicas é tal que você poderia copiá-lo e aplicá-lo em outra empresa sem grandes problemas de adequação, provavelmente não é específico o suficiente. Não quer dizer que não é importante medir indicadores tradicionais, como faturamento ou lucratividade. Mas a escolha do que será medido também comunica a estratégia: uma empresa que têm como principal indicador de relação com os clientes o NPS (que mede lealdade) têm uma estratégia de relacionamento diferente de uma empresa que usa o CSAT (que mede satisfação). Ambas estratégias são viáveis, mas, naturalmente, envolvem decisões diferentes.
Uma forma interessante de integrar a diferenciação nos indicadores estratégicos está no que Jim Collins chama, no clássico “Empresas Feitas para Vencer”, de denominador econômico. Se você pudesse escolher um denominador, sob o qual dividirá seu resultado financeiro (seja lucro, EBITDA, ou como preferir medir), qual seria esse denominador?
A resposta a essa pergunta, na minha visão, ajuda a trazer clareza de um dos principais fatores de diferenciação da organização. No livro, Collins dá o exemplo do Walgreens, uma famosa rede de farmácias (mais para um mercado, talvez) aqui dos EUA, e como a rentabilidade era medida por lucro por metro quadrado. Imediatamente, você entende uma parte da estratégia da empresa: otimizar ao máximo os espaços, e investir em merchandising para maximizar vendas por loja.
A lógica do denominador econômico pode gerar reflexões interessantes também em empresas de serviços, no qual o mesmo pode parecer menos óbvio. Se você têm uma consultoria, por exemplo, poderia ter algumas opções no seu denominador:
lucro por projeto, o que indica uma estratégia de eficiência e melhoria de margem unitária
lucro por consultor, o que indica uma estratégia de aumento da capacidade dos consultores, seja produtiva, seja por aumento de qualidade
lucro por cliente, o que indica uma estratégia ativa de gestão de carteira e relacionamento com clientes, com foco em upsell
O ponto central é o seguinte: a forma como você decide apurar seu desempenho estratégico pode te aproximar, ou te afastar, a diferenciação buscada.
No final do dia, você quer que seus clientes, seja externos ou internos (isso também vale pra departamentos!) falem: “caramba, eles são incomparáveis nisso!”
Pensamento: causal
Como identificar uma cadeia de objetivos relacionados para encontrar alavancas?
Ainda sobre diferenciação, existem muitos caminhos possíveis para alcançar objetivos similares. E esses caminhos são construído a partir de relações de causa e efeito entre diferentes abordagens e objetivos da organização. Entender essa causalidade é fundamental para construir estratégias consistentes.
Causalidade é a visão de que, se uma coisa for feita ou alcançada, então outra pode ser feita ou alcançada. Essa lógica se → então é fundamental para a construção de estratégias consistentes.
Para exemplificar, vou utilizar um exemplo pessoal de uma discussão que vivi. Como aumentar o faturamento de uma empresa de consultoria? Simplificando bastante a abordagem, podemos dizer o seguinte que você pode aumentar o faturamento:
Aumentando o preço dos serviços prestados
Aumentando o volume de serviços prestados
Por si só, as duas opções são praticamente antagônicas: dificilmente é possível aumentar preço e volume ao mesmo tempo, especialmente em serviços. Mas podemos aprofundar ainda mais em cada um deles:
Para aumentar o preço dos serviços você pode:
Aumentar a qualidade das entregas
Aumentar a força da marca da empresa
Para aumentar o volume de serviços você pode:
Aumentar a capacidade de venda da empresa
Aumentar a capacidade de operar serviços da empresa
Nesse nível, as escolhas já passam a ter um pouco mais de aparência de estratégia: se você aumentar a qualidade, então, pode vir a aumentar o preço. Se aumentar o preço, então provavelmente será capaz de aumentar o faturamento. Mas é possível descer ainda mais:
Para aumentar a qualidade das entregas você pode:
Aumentar a remuneração dos consultores, para atrair consultores mais seniores
Aumentar a quantidade e qualidade de treinamentos pelos quais os consultores passam
Para aumentar a força da marca da empresa você pode:
Gerar conteúdo sobre a empresa e seus serviços, para aumentar sua autoridade no assunto
Promover a divulgação da empresa em canais, como mídias sociais, ou mesmo assessoria de imprensa
Para aumentar a capacidade de venda da empresa você pode:
Aumentar a geração de leads para o pipeline de vendas da empresa
Aumentar a conversão de leads, por meio de maior preparação dos executivos de vendas
Para aumentar a capacidade de operar serviços da empresa você pode:
Padronizar os processos utilizados para a realização de novos projetos
Melhorar a formação de novos consultores no modelo de gestão de projetos da empresa
O diagrama abaixo ilustra a árvore de causalidade criada na estratégia de aumento de faturamento:
Não existe estratégia certa entre as abordagens propostas. Mas existe uma errada: tentar fazer tudo. Ao olhar para esse mapa de objetivos, fica evidente perceber que certas iniciativas são, de certa forma, antagônicas.
Por exemplo: uma empresa que foca em aumento de preço por meio de ganhos de qualidade, remunerando melhor o time, dificilmente teria bons retornos na padronização maior de processos. Da mesma forma, uma empresa que dedica mais recursos à sua estrutura de treinamentos internos provavelmente não deveria investir consideravelmente, em um primeiro momento, em trazer profissionais de remuneração mais alta, que aproveitariam pouco a estrutura de treinamentos. Ou seja, entender relações de causa e efeito entre diferentes opções estratégicas e, especialmente, entender possíveis conflitos entre os caminhos escolhidos, é fundamental para alinhar esforços de forma inteligente.
Estrutura: arquitetura
O time está organizado da forma mais estrategicamente eficaz?
A preocupação central de um líder em relação à sua estrutura, no que se refere ao horizonte de planejamento estratégico atual, não está os processos que precisam ser executados pelas áreas, mas no que as une: a arquitetura organizacional da empresa.
Um dos maiores erros que percebo em processos de planejamento estratégico, é justamente o de fazê-lo tendo como referência a estrutura atual. Por exemplo, define-se um modelo a ser seguido por cada área, que cria seu planejamento. No final, com algum esforço de integração, chega-se no planejamento estratégico da empresa.
O problema dessa abordagem é partir do pressuposto de que a estratégia serve aos objetivos da estrutura, quando a realidade oposta: estratégia sempre deve preceder estrutura. Não necessariamente, para uma estratégia e um conjunto de objetivos definido pela empresa, a estrutura atual é a ideal.
Uma história que ilustra bem essa relação é a de Alfred Sloan à frente da General Motors. Sloan percebeu que a estrutura funcional, dividida por áreas (marketing, financeiro, produção, etc.) não atendia da melhor forma uma demografia cada vez mais diversa de consumidores de carros, que exigiam uma estratégia de proximidade e conhecimento das necessidades específicas. Para lidar com essa nova estratégia, Sloan criou a estrutura divisional, onde separou a GM por marca, como Chevrolet, Buick e Cadillac, com lideranças e funções locais, com apenas algumas poucas funções corporativas. Essa estratégia permitiu uma maior proximidade com os clientes e maior entendimento das suas necessidades, assim como tradução desses entendimentos e melhores produtos, melhores campanhas e melhores processos de vendas, catapultando a GM para a posição de maior empresa do mundo na época. Caso Sloan tivesse construído sua estratégia de relação com os clientes a partir da estrutura existente, dificilmente teria alcançado os resultados que buscava.
Porém, você não precisa pensar em arquitetura apenas no nível da organização toda, o redesenho de arquitetura também pode acontecer dentro de um departamento ou time. A pergunta central permanece: o time está organizado da forma mais eficaz, no sentido de atender o que é previsto na estratégia? Talvez o caminho seja reorganizar por função, por nível de senioridade, ou mesmo por macroprocesso, ou manter do jeito que está. Mas refletir sobre a estrutura a partir da estratégia é fundamental.
Algumas perguntas que descobri que ajudam bastante a refletir sobre a arquitetura da sua organização, ou departamento, ou equipe:
Cada equipe/departamento tem prioridades claras?
Cada equipe/departamento tem autonomia para tomar decisões rápidas?
Cada equipe/departamento tem as competências necessárias para realizar seu trabalho bem?
Cada equipe/departamento tem fluxos de informação eficientes?
As formas pela qual as equipes/departamentos são medidas incentivam a colaboração entre elas?
Tarefa: oferecer contexto
A expectativa sobre o líder é de que seja capaz de trazer contexto para que as pessoas saibam o que fazer, como fazer e porque fazer.
Após a realização de um planejamento estratégico, duas ilusões são recorrentes entre líderes, ambas com efeitos nocivos.
A primeira é a ilusão de achar que as pessoas sabem de tudo. Afinal de contas, o planejamento foi compartilhado em uma reunião geral, ou o documento foi compartilhado na rede interna da empresa. Minha experiência me diz que, tirando as pessoas bastante engajadas, que correm atrás e se aprofundam nos documentos (claro, caso estejam disponíveis), no geral, uma apresentação ou um compartilhamento não é o suficiente. Via de regra, as pessoas não vão conhecer o planejamento, e precisarão de mais momentos para entenderem as escolhas estratégicas e como afetam seu dia a dia, para aí sim, passarem a tomar decisões mais alinhadas
A segunda é a ilusão de achar que as pessoas não precisam saber de nada. Afinal de contas, o planejamento estratégico é um instrumento de alto nível, que não é necessário para alguém que está realizando um trabalho operacional. Porém, é importante lembrar que um planejamento estratégico sempre vai afetar a vida das pessoas, mesmo que não afete os processos aos quais elas estão alocadas no momento. Pode afetar novas metas definidas, novas políticas implementadas, e por aí vai. Sem o conhecimento das razões por trás daquelas mudanças, é natural que as pessoas fiquem ressentidas, ou mesmo, que sabotem as transformações necessárias.
Por isso é fundamental o papel da liderança oferecendo contexto: o líder, por definição, sempre tem uma visão mais privilegiada da estratégia do que seus liderados, justamente por ter uma posição mais abrangente. Ele pode utilizar esse privilégio de visão para traduzir a estratégia da organização na realidade daquele time, respondendo perguntas como:
O que muda no nosso dia a dia com a estratégia? Porque essas mudanças são importantes?
O que muda na organização com a estratégia? E em nosso time?
Como nossa equipe contribui com a estratégia? Como isso é medido?
Com mais contexto sobre a estratégia, as pessoas podem tomar decisões melhores, apoiarem mudanças estratégicas relevantes e mesmo se engajarem com novas ideias e iniciativas. Quando o assunto é estratégia, é melhor pecar pelo excesso de alinhamento, do que pela falta.
Até aqui, nossa matriz de liderança estratégica conta com esses elementos:
Como comentei no começo do artigo, o desafio da liderança estratégica está justamente na integração de polos opostos: longo e curto prazo, pragmatismo e idealismo, abstrato e concreto. E justamente por isso que ela é tão relevante, sem um conjunto de práticas específicas para lidar com esse dualismo, corremos os riscos dos extremos: focar demais em intenções e pouco em ações, ou ficar cego pelo alcance de resultados imediatos, sem a visão dos seus efeitos de longo prazo. Mas tendo uma abordagem mais sistemática e planejada, é possível mitigar uma boa parte desses riscos, sem perder os gerados por visão ou tática.
No próximo e último artigo da série, o foco será na liderança tática, capaz de disciplinar a organização em prol de seus objetivos de médio e longo prazo. Além disso, com a matriz devidamente preenchida, também compartilharei alguns aprendizados de aplicação do modelo na prática, como rituais específicos para cada horizonte, assim com relações entre cada um deles.
Até lá!
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